MINHA MÃE DEOLINDA DA CONCEIÇÃO • COMUNICAÇÃO NO FESTIVAL ROTA DAS LETRAS 3-DEZ-2021
Boa tarde,
Antes do mais quero agradecer à organização do Festival Literário “Rota das Letras”, e ao seu director, Ricardo Pinto, esta sessão dedicada a Deolinda Salvado da Conceição, minha Mãe.
Nascer em Macau constitui a assumpção da peculiar circunstância de se nascer num lugar de cruzamento de culturas e das inerentes peculiaridades e decorrentes idiossincrasias.
Deolinda do Carmo Salvado, nasceu a 7 de Julho de 1913. Era a quarta de oito irmãos, filhos de António Manuel Salvado, comerciante, nascido em Medelim, na zona de Castelo Branco, e de Áurea Angelina da Cunha, natural de Macau.
Pouco ou nada sei da sua curta vida. Esse pouco chegou-me por relatos vários que fui recolhendo e pelas fotografias de família. Sei que, com apenas dezoito anos, partiu para Xamien, o lugar das legações em Cantão, onde, à revelia da ordem paterna e já denotando uma vontade muito própria, casou com Luís Alves. Seguiu então para Xangai, correria o ano de 1932 ou 1933.
É, pois, uma muito jovem mulher que corre atrás do sonho de uma vida melhor onde poderia empregar, numa das muitas “Hong” ou empresas estrangeiras que existiam em Xangai, os seus conhecimentos de inglês, aluna brilhante que fora, no Liceu de Macau.
Em 1937, aos 24 anos, com dois filhos pequenos, os meus irmãos José e Rui Alves, já em processo de separação, refugiou-se em Hong Kong fugindo à invasão japonesa de Xangai. Neste período dirigiu uma escola num campo de refugiados onde se recolhera, enquanto traduzia, para português, notícias para o jornal “A Voz de Macau”. Hong Kong veio a cair sob as baionetas japonesas em 1941. O meu tio-avô, cónego Artur Gonçalves foi quem conseguiu resgatar a sobrinha rebelde, jovem de 27 anos, e trazê-la sã e salva, com os filhos, para a neutralidade de Macau.
Não deixa de ser curioso que é nesta Macau de onde fugira anos antes, que minha Mãe se irá reencontrar. Primeiro profissionalmente, tornando-se professora de Inglês e Estenografia na Escola Comercial Pedro Nolasco, além de dirigir outra escola para refugiados, e, em 1947, quando Hermman Machado Monteiro funda o “Notícias de Macau”, se torna também secretária da redacção. Depois, emocional e afectivamente, ao reencontrar meu Pai, seu antigo colega de Liceu, com quem retoma uma relação que ecoaria na hipocrisia da época e do lugar: foi destituída de todos os cargos lectivos que exercia, por conduta contra a moral e os bons costumes.
A igreja, em geral, e a sociedade, viam naquela Mulher uma ameaça.
Em 1949, já jornalista por mérito próprio, os meus pais casam-se no lugar mais apropriado, a sala da redacção do “Notícias de Macau”, onde ambos trabalhavam como jornalistas.
Foi ali, sob a sombra da histórica e íngreme calçada do Tronco Velho, que quotidianamente subiam, que Deolinda e António foram aceites pela sociedade de então, face à sua postura e força de carácter.
Minha Mãe, a somar a todas as suas outras funções, foi também correspondente do Diário Popular, na altura um cargo notável para uma Mulher, e é dela a reportagem feita à visita do então Ministro do Ultramar, Comandante Sarmento Rodrigues, para este periódico.
O “Notícias de Macau” e o seu núcleo duro, constituído por uma plêiade de gente como Hermman Machado Monteiro, proprietário do jornal, a Cassiano da Fonseca, director do jornal e padrinho de casamento dos meus pais, Luís Gonzaga Gomes, o “inho” Gomes, silencioso chefe de Redacção, Patrício Guterres, que matraqueava as teclas de uma máquina de que há muito se tinham sumido as letras, José dos Santos Ferreira, o senhor “Adé” como eu lhe chamava, Adelino Barbosa da Conceição, meu tio, a D. Maria, secretária da administração, senhor Jacob Lei, chefe dos tipógrafos, anualmente reuniam em jantares promovidos por Hermman Machado Monteiro, sem haver distinções ou discriminações.
Tais jantares contavam ainda com a presença do Dr. Pedro José Lobo, personalidade de extrema importância não apenas na Macau dos anos da guerra e nas duas décadas subsequentes, mas também como filantropo e mecenas que, estou convicto, permitiu a viabilização do “Notícias de Macau”, definitivamente um núcleo da intelectualidade Macaense de que a maioria dos seus integrantes foi remetida, no dizer de António Aresta, para uma injusta nota de rodapé.
Deolinda não era noticiarista. A sua natureza interventiva não lho permitiria. Deolinda dirigia o suplemento feminino do jornal, e não deixava de opinar sobre os mais diversos assuntos Dos textos que publicou gostaria de destacar o texto “O Carnaval da Época e a Época de Carnaval” bem denotativo da sua frontalidade:
.../... Mas a época do Carnaval passa célere e não deixa senão uma lembrança muito vaga de quanto se disse e se fez. Porém o Carnaval da época, esse que preside a tantos actos sérios da vida, esse que domina até as nações e impera como déspota na Sociedade, esse jamais passará, descansa apenas durante três dias, porque o mundo teria de ser outro e bem outro para que ele desaparecesse completamente.
O carnaval de todos os dias, o carnaval das relações de conveniência, o carnaval das mentiras ditas com serenidade, o carnaval da hipocrisia mascarada de virtude, do vício vestindo o hábito da santidade, da intriga e da inveja, o carnaval dos apertos de mão escondendo intenções reservadas, dos sorrisos a encobrir projectos maldosos, da honestidade a disfarçar ambições ilegais, enfim o carnaval que a época presente vive, esse é que é o verdadeiro carnaval.
Olha-se em roda e o cortejo carnavalesco não tem fim. São nações que, falando da paz se preparam para uma guerra de extermínio. São estadistas que, professando o amor da humanidade, sacrificam a flor da mocidade a uma morte inútil, despovoando os lares e lançando neles o luto e dores espantosas com a perda de entes queridos.
São homens que se dizem de bem, mas que zelam apenas os seus interesses, sacrificando em proveito próprio o seu semelhante” .../...
Apesar de jovem, não vivia de ilusões e, a propósito do carácter simultâneamente elegante e frontal com que zurzia com inteligência e razão pessoas ou situações, nomeadamente na sua luta pela Igualdade da Mulher, que ela encarnava como ninguém numa Macau submissa, recordo um breve incidente que me foi narrado por meu Pai: um familiar telefonou pedindo que Deolinda escrevesse um artigo sobre uma obra pública que tinha mandado fazer. Minha Mãe, compreendendo que tal pedido ia contra os seus princípios, respondeu-lhe educadamente que não, ciente que, talvez, essa resposta fosse afectar relações futuras. Tal, porém, não sucedeu, porquanto o mesmo familiar receava em muito o seu espírito emancipado e perspicaz.
Em 1956, tinha eu 5 anos, cumpriu o sonho de visitar Portugal, já a doença a minava. Fomos viver para a rua Barata Salgueiro. Desse período, recordo-me de um dia em que minha Mãe me chamou quando eu ouvi na rua cascos de cavalos. Pedi-lhe “um instante Mãezinha”, e fui à janela ver a GNR a passar.
Voltei a correr para junto dela e ainda hoje me ressoam nos ouvidos as suas palavras de Mãe e Educadora emérita: ”muito bem, meu filho, foi mesmo um instante”. Era assim, de uma enorme sensibilidade e inteligência até intuitiva.
Para Lisboa tinha trazido consigo um conjunto de contos seus já publicados no “Notícias de Macau”. Esta Mulher desconhecida em Portugal mostrou-os ao editor da Livraria “Francisco Franco”. Pouco tempo depois foram dados à estampa num volume sob o título “Cheong Sam – A Cabaia”.
O crítico literário João Gaspar Simões, saudou com entusiasmo o aparecimento desta obra fora do comum: “Não há dúvida, porém, que os contos de Deolinda da Conceição, na simplicidade do seu estilo e na singeleza dos seus recursos narrativos – muitos deles são breves narrativas, sem diálogo nem acessórios de observação ou paisagem – são qualquer coisa de invulgar no panorama da nossa literatura de ficção.”
Tenho de minha Mãe resquícios de memórias muito doces, revelando uma Mulher muito à frente do seu tempo também no que tocava à pedagogia. Havia sempre algo de protector, frases encorajadoras cujo espírito ficou em mim sempre gravado.
Deolinda soube equilibrar bem os seus diversos papéis, de jornalista, e de Mãe.
Finalizando, direi que pessoas como Deolinda Salvado da Conceição não morrem nunca. Transmutam-se em referências, em tempos de dificuldades.
Muito obrigado.
Comments
Post a Comment