A MEMÓRIA E O FUTURO
O Plano de Recuperação Económica e Social a 10 anos, de António Costa Silva, despertou em mim, à partida, uma réstia de esperança. Oxalá, pensei, reflectindo no Alá que deu origem à esperançosa palavra. Mas depois lembrei-me de Goscinny e Uderzo e achei que somos muito parecidos com os da aldeia gaulesa, mas sem poção mágica. Mas que andamos à tareia uns com os outros, lá isso andamos. Dez anos são duas legislaturas e meia. Seria esperar muito da nossa disciplina. Virei-me então para o Poeta, e para uma sua entrevista, muito possivelmente desconfortável para os bem-pensantes:
“…Fernando Pessoa vai responder às perguntas que lhe fizemos:
- Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos - político, moral e intelectual?
- A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico.
Todo povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita - como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova - o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima.)
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.”
“…- Estamos tão desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua totalidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se. Apesar dos grandes obstáculos à nossa regeneração - todas as doutrinas de regeneração - estamos no início de tornar a começar a existir. Chegámos ao ponto em que colectivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho. “
“.... Nada há a esperar, é certo, das classes dirigentes, porque não são dirigentes; e ainda menos da proletariagem, porque ser inferior não é uma superioridade. Com razão lhes chamei eu, a estes, subgente, num artigo da antiga Águia - da Águia que voava. Só a burguesia, que é a ausência da classe social, pode criar o futuro. Só de uma classe que não há pode nascer uma classe que não há ainda. Seja como for, avancemos confiadamente. Todos os caminhos vão dar à ponte quando o rio não tem nenhuma.
in Ultimatum e Páginas de Sociologia Política . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
Enquanto as profecias de Nostradamo e Bandarra não se cumprem, vamos andando pelo modo que temos de caminhar.
O povo, por exemplo, não caminha, rasteja. Ganha pouquíssimo, enquanto a classe média está destroçada e os pseudo-aristocratas andam nas mãos da justiça, porque não são aristocratas. A aristocracia é outra coisa, não vem do nome, mas do comportamento e da postura. Se o fossem de facto, não seriam assim. De permeio vamos olhando para o que temos para vencer a crise.
A CRISE
As crises não nascem de um dia para o outro. Não é o Covid que determina a crise. Nós somos a crise.
A Covid é autora de muitas mortes e a perda de muitos empregos.
Porém não foi a autora de um tecido empresarial que conforma a nossa economia numa estrutura em que 99.4 por cento é composta por pequenas e médias empresas, e apenas 0.6 por cento daquilo a que se convencionou chamar grandes empresas. No entretanto, conseguimos dar cabo da Lisnave, da Setenave. A Casal Ribeiro foi-se. A Zundapp Famel também.
Infelizmente não tivemos nenhum designer de motocicletas – como Chicara Nagata, que cria autênticas obras-primas – ou pensámos sequer numa verdadeira motocicleta portuguesa, capaz de rivalizar com a Honda, a Suzuki, a Ducati ou a Harley Davidson. Seria mais fácil do que construir um automóvel.
motocicleta de autor • Chicara Nagata
Curiosamente, enquanto investigo, dou de caras com a FST chinesa, que fabrica motocicletas eléctricas com motor de 3000W e 72v...
A Farinha Amparo ficou desamparada e finou-se. As canetas Molin perderam a cor e desapareceram. A UMM, União Metalomecânica fabricou jipes 4x4 para a agricultura, mas não se aguentou, A TAP perdeu os seus 747, e o mais que me não ocorre.
Infelizmente não produzimos automóveis, nem relógios, nem telemóveis. Infelizmente trabalhamos a feitio, como esta saia fabricada anonimamente em Portugal para o maior grupo de moda, a Inditex, que, ironicamente, está aqui a dois passos, em Espanha.
É isto que somos na essência: fabricantes a feitio. E falantes. Falamos até o diabo fugir. É isto e aquilo, vai acontecer isto e aquilo, e assim se instituiu o Dia de S. Nunca ou Dia do Falazar.
Ou então temos produtos, como os queijos, que duvido sejam mundialmente conhecidos porque aí estão os franceses, italianos e os suíços, e nós, magnanimamente, deixamos de os promover da mesma forma que eles promoveram os deles e os tornaram mundialmente conhecidos.
MÃOS À OBRA EM VEZ DOS EGOSITOS
Se escrevo é porque vivenciei experiências que procuro partilhar para bem do meu País.
Hong Kong fica apenas a 1 hora de viagem no conforto de um turbo-jet ou um jact-planador.
Nos finais dos anos 1970s espantava-me com o número de alfaiatarias em Hong Kong, e nomeadamente em Kowloon, direccionadas para os turistas americanos e australianos. Depois de alguma pesquisa, percebi que as "alfaiatarias" não tinham alfaiates, apenas a loja e o atendimento. Chegavam a ir aos hotéis com livros de amostras de tecidos e tiravam as medidas no quarto do cliente. 24 horas depois e após uma prova, a coisa estava pronta.
O segredo é que nenhuma "alfaiataria" tinha alfaiates. Estes tinham-se juntado numa cooperativa e serviam todas as alfaiatarias que trabahavam neste formato. Nem as alfaiatarias tinham de pagar aos alfaiates, nem estes ficavam à mercê do negócio de uma alfaiataria. Os fatos não eram grande coisa, mas os clientes lá se satisfaziam que a coisa era mais barata que nos Estados Unidos ou na Austrália.
Depois, mais tarde, conheci uma alfaiataria que já tinha pretensões, e a elas fazia jus. Era a Royal Regency Tailor que demorava mais a fazer e enviava para a residênciados clientes. Eu fiz lá umas camisas e fiquei com direito aos seus emails.
QUEM SOMOS
Mas embora os exemplos alheios sejam o que são, jamais poderemos ver-nos a nós próprios. Estamos entalados dentro de um corpo e o que vemos é apenas a nossa simetria espelhada. Precisamos de ser vistos de fora cá dentro, porque somos aquilo que vivenciamos e, muito raramente, aquilo que sonhamos.
Andamos há demasiado tempo à nossa procura. De um nós nacional, sem arroubos de patriotismo, nem tardanças de chegadas a compromissos a fingir que é fino, nem carrões para mostrar o quanto descapitalizamos as fábricas e empresas, vulnerabilizando operários e economia. Um nós que seja exemplo de excelência, de disciplina, de método, e de produtividade. Um nós que não viva do chico-espertismo de tentar sempre passar a perna ao outro.
Vale a pena porém dizer que aqui no Norte (sem menosprezo por outros lugares do país) a relação interpessoal é agradável, amena, eivada quase sempre de cortesia. Sabe bem, mas o país precisa de mais.
Temos, ao que sei, excelentes vinhos, mas curiosamente, eu que não bebo, constatei há bem poucos anos que, nos supermercados de Zhuhai, só havia vinhos franceses e italianos, apesar de representantes da nacional bebida existirem em Macau. O que se passa para que o vinho Português, premiado e não só, não tenha mais valia?
E que dizer do nosso pastel de nata? Ou, como se diz aqui no Norte, a nossa nata? Felizmente circula entre Singapura e Nova York, e entre os Sauditas, a Coreia do Sul e Malásia. Quem lucra? Ao que soube é a Nata Pura, que factura entre 1.5 e 2 milhões de euros. Está de parabéns. Só que devemos ser muito mais exigentes. 2 milhões é muito pouco.
Temos a Castelbel que adoptei para mim, espalhada por 33 países com mil pontos de venda. Independentemente da consolidação, é necessário querer mais, ousar mais, promover mais e sobretudo melhor.
Onde está a promoção a sério do Made in Portugal? Onde estão as grandes marcas de roupa a rivalizar com o estrangeiro? Não há! Mas lá ir a feiras vamos. E às vezes a banca oferece uns certificados de bom comportamento financeiro. Depois vem um designer de sapatos e diz que a China devia compensar o prejuízo, abrindo-se ao mundo na mais estranha das formas de tentar caçar moscas com vinagre. Caso para dizer, não suba o sapateiro além da chinela.
Temos uma auto-estima que me causa perplexidade. Temos esta imperiosa necessidade de nos celebrar a cada passo. Por qualquer coisa, geralmente pequena. Há esta tendência para criar heróis domésticos a raiar o bacoco, como o fenómeno da histriónica apresentadora de televisão. Porque os verdadeiros estão lá fora e não são assim tantos. Ronaldo no futebol, António Felix da Costa na Fórmula E, Jorge Fonseca no judo.
Sempre foi preciso sair para se ser grande. Não sei porquê, mas recorda-me aqueles fin-de-história em que todos se sentam a comer javalis. Só não temos poção mágica nem planos para o dia seguinte.
Seguramente somos criativos. Inventámos o Multibanco e os nossos gestores bancários inventaram o impensável: pagarmos para termos uma conta no banco: isto é, a negação do conceito da banca. Inventámos e bem a Via Verde, e o Zebinix, um antipiléptico. Inventamos o Color Add, sistema de identifcação de cores para daltónicos.
A CEGUEIRA SEM ENSAIO
E inventámos a Nega. Sim, os fabricantes a feitio com pretensões autorais de moda, convencidos (finalmente) por mim – constituo-me em testemunho – que me vi convidado como designer de moda pela China, em 1994, a irem até à China fabricando o meu design, e após o sucesso que permitia a confirmação da qualidade geradora de uma proposta Chinesa de 0.5% da população, equivalente a um mercado assegurado de sete milhões de compradores, parceria com fábrica e mão de obra oferecidas a requerer apenas know how, disseram não! A facturação anual estimada para 7 milhões de compradores assegurados seria, então, de mil e quatrocentos milhões de euros, e isto com a movimentação de uns sete formadores e, seguramente, tecnologia Gerber fornecida. Mas não, o que os fabricantes a feitio queriam era exportar para a China, quando o preço de fabrico português (CMT vulgo Cut Manufacturing and Trimming) era de 150 USD e o da China de 35 USD. Como se alguma vez tivessem capacidade para fabricar milhões de peças!
Poderia ter sido esta a semente para o “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago.
A esperteza não é, seguramente, uma qualidade, ao contrário da inteligência. A esperteza é o caminho mais rasteiro e curto para se chegar a um fim. Nada mais.
No capítulo do mobiliário, por exemplo, Paços de Ferreira apanhou com a IKEA em cima. Uma promoção? Pessoalmente desconfio. Na capital do móvel português ficou o fast food do móvel escandinavo. Há quem lhe veja vantagens. Para mim a vantagem seria conseguir que os industriais do móvel criassem uma linha internacional melhor do que a IKEA. Mas ao que consta, nas frentes industriais, ninguém pensa em colaboração construtiva. Os egos em Portugal são muito fortes.
Também me foram namorar a Macau para desenhar móveis. Que tinham gostado muito dos móveis lá de casa, que eu tinha desenhado. E era melhor eu ser um novo rico que um velho pobre. Aí afinei. Ainda há gente que pensa que dinheiro é riqueza. E não sabiam que em Macau se trabalha depressa. Por exemplo, um livro imprime-se em 4 dias. Voaram-me para o centro do país, mas não havia móveis, só cerâmicas... Fiz os protótipos dos móveis antes do prazo. Estavam de férias, não responderam, que as férias de quem assim trabalha não se interrompem. Depois não queriam pagar. Ricos, mas xungas. Claro que só podia dar em nada. Aí fiquei mais do que de sobreaviso.
Pessoa é ele e os seus heterónimos, mas nem mesmo os 0.6 por cento das grandes empresas são exemplos morais.
A ESPERTEZA vs INTELIGÊNCIA
Pelo menos uma empresa, que se saiba, põe os ovos na Holanda.
Chamam-nos de gangsters, mas ouço dizer que esses não enganam ninguém. Outra, a EDP, pertence parcialmente à chinesa Thre Gorges que, entretanto, vendeu algumas acções, enquanto os gestores de topo, António Mexia e João Manso Neto são, de acordo com a imprensa, suspeitos, em coautoria, da prática de quatro crimes de corrupção activa e de um crime de participação económica em negócio, tendo sido constituídos arguidos há cerca de três anos.
Agora ficam também proibidos de viajar para o estrangeiro, impedidos de entrar nos edifícios da EDP e contactar com arguidos e testemunhas.
Depois temos o caso do BES, que já tresanda e, ao que consta, se associa a outros casos.
Que dizer da Portugal Telecom e do julgamento de Zeinal Bava e Henrique Granadeiro? E o caso Sócrates? Mas a procissão passa por Duarte Lima, Armando Vara, Isabel dos Santos, Joe Berardo, o falecido José de Oliveira e Costa, para já não falar no que veio a público sobre como Cavaco Silva aceitou 253 milhões do BES. Diz o ECO de 27 de Julho de 2020 o seguinte:
“No dia 26 de novembro de 2010, os administradores do BES, Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo, Amílcar Pires, António Souto, Joaquim Goes e Pedro Homem, sacaram cheques sobre as contas de que eram titulares, e emitiram esses títulos de crédito à ordem da candidatura presidencial de Aníbal Cavaco Silva”, lê-se logo no primeiro parágrafo deste capítulo da acusação, a que o ECO teve acesso. “O donativo assim efetuado por cada um ascendeu a 25 mil e 560 euros, à exceção do realizado por Amílcar Pires e Pedro Homem em que esse valor foi de 25 mil euros. Para além destes, Rui Silveira, Manuel Fernando Espírito Santo, Carlos Beirão da Veiga e Pedro Brito e Cunha, efetuaram donativos para a mesma campanha, no valor de 25 mil euros”, diz o despacho.
Apenas o cheque assinado por Ricardo Salgado foi preenchido informaticamente e todos os nove restantes foram assinados e preenchidos à mão e dirigidos à “candidatura de Aníbal Cavaco Silva”. No total foram dez doações, umas de 25 mil e outras do valor máximo permitido por lei de 25.560 euros. A recolha de donativos para esta campanha originou o valor total de 1,5 milhões de euros." (fim de citação).
Entretanto, o Banco Bom (nome irónico) agora Novo Banco, mostra do que é feito.
Este é o universo onde vivemos e temos de viver cautelosamente. É assim que vai este país onde quase todos os dias se descobre um milhafre. Quando o dinheiro é pouco, alguns querem-no todo para si. No entanto tem um povo simpático e de brandos costumes, um clima espectacular, diversidade enorme de ambientes, do Norte ao Sul. E recordansdo novamente Pessoa “... Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise”.
Como é possível, assim, com tanto milhafre e um povo de brandos costumes, pensar-se na promoção do país e dos seus produtos?
É certo que há start ups mas, o que os que podem, transmitem aos mais novos é desencorajador, porque eles não foram capazes de promover o made in Portugal, conferir-lhe mais valia, não foram capazes de desafiar os poucos empresários dignos desse nome a terem a audácia de se tornarem autores de produtos de grande expansão e consumo, ou ocupando nichos de mercado de imensa procura.
Não me falem em petrolíferas que o petróleo não tem pátria. Nem na banca, pela mesma razão, embora prontamente me ocorra a Suiça, talvez não pelas melhores razões. Mas também fabrica chocolates, e os tais queijos que sabemos, e o Rolex, e o Pathek Philippe e tantas outras marcas.
O tanto que temos e que muitos ignoram.
Então desde há muito que se sabia e se tornava óbvio que haveria de se apostar no valor acrescentado. Mas isso ninguém parece querer saber. O que interessa é o imediato, é a encomenda que (esperemos) vem aí.
Grandes, grandes, temos o Cristiano Ronaldo, um verdadeiro Albuquerque do nosso século. Ele é o que todo o português almeja ser, mas não é porque a manha é mais forte que o trabalho. Sem esquecer o Mourinho e a sua versão popular, mas nem por isso pior, de JJ.
VALORES E RITOS
D. João de Castro penhorou uns quantos cabelos da sua barba na Índia, e isso era penhora suficiente. Hoje a palavra de pouco vale, a honra deixou de o ser, a honestidade nem sempre, chegar a horas a uma entrevista é coisa para tolos, ser-se caloteiro pode ser um modo de vida. Os media, nomeadamente a televisão, anestesiam, estupidificam, dominados por outros interesses que não o de servir.
Por cá, os valores vão-se esboroando. Faltam homens como Fialho, Ramalho Ortigão e mesmo Eça, para a crítica aos valores e costumes. Agora há comentadores, políticos desempoleirados ou com ânsia de exposição, alguns especialistas e arruma-se o pacote onde cabe também a cidadania. Num ápice tudo se dissolve como em bolas de terra seca transformadas em pó. No entanto, sem os valores fundamentais é impossível progredir.
A propósito de valores, recordo outros, do Japão:
Giri 義理 (leia-se guiri), é um valor nipónico que corresponde aproximadamente a "dever", "obrigação" ou mesmo ao "peso da obrigação". Namiko Abe define giri como "servir os superiores com abnegada devoção“. É a complexidade dos valores japoneses que lidam com a lealdade, a gratidão e a dívida moral. Esse valor é tão essencial à cultura japonesa que se diz que o conflito entre giri e ninjo, definido como "sentimento humano", tem sido o principal tópico do drama japonês desde a antiguidade.
Robert Mitchum, em “Yakusa”, iria aprender que mesmo a máfia nipónica tem ritos e códigos. Aí, um erro clamava por giri que se cumpria com o corte de uma falange do dedo mínimo e subsequente oferta do mesmo envolto num lenço branco ao chefe. Estão interditos hesitações, esgares de dor, sons.
Se bem que as culturas sejam diferentes, há valores que são universais. Daqueles em que a palavra, a honra, o sentido do dever, e o conjunto dos restantes deveres morais pouco diferem.
Os ritos ajudam a estruturar até os comportamentos sociais, a democratização das relações de grupo. O mundo abunda em versões do que é o preconceito e o convívio e aos comportamentos que ocorrem com a decadência da educação. Os sinais autistas também estão aí à mão de semear, iniciados e insuflados pelas novas tecnologias.
Conviver deixou de ser o que Eça descrevia. A arte da conversa dissolveu-se, enquanto forma de comunicar, que envolvia todos os presentes, aniquilada pelos tempos, pela progressiva ignorância que a tecnologia que colava os ouvidos ou olhos e ouvidos à rádio ou à televisão trouxe e, mais recentemente, ao consumo estupidificante da mais cotada indústria digital: os jogos de computador.
Lembremos Pessoa novamente “Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada.”
Os Ritos, aos quais caberia a valoração do esmero educacional, o modo de relacionamento entre as várias idades, não existem. Por seu lado o cuidado na contemplação dos vários membros de um mesmo agregado deu lugar à ocasião, ao virtual, que convida à emergência da ignorância, uma quase forma de autismo, que é essa condição de não saber que não se sabe.
E é neste estado de pulverização da tessitura a que chamamos de sociedade, em que o tratamento entre avós, pais, filhos e netos se esboroa em termos de respeito, parece indiciar que nos encontramos à espera de um Renascimento, de um quase Quinto Império que nos venha resgatar e nos coloque à cabeça do mundo, coisa pouco provável, quimera que nos vai alentando, utopia que tudo parece querer resolver.
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