O ARTIVISTA • JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA                             


Em novembro de 2015, o artista brasileiro Samuel Pires traçou uma linha imaginária em redor do Museu de Arte Conceptual de Bremen, na Alemanha.

“Esta linha separa o mundo real de uma fantasia faustosa e inútil, que os contribuintes sustentamcom os seus impostos”, explicou Pires em comunicado, que enviou a diversos jornais, rádios e televisões.

O trabalho, isto é, o comunicado original, assinado por Pires, foi adquirido, alguns dias depois, pelo próprio museu, por 150 mil euros. “ 

É uma obra extraordinária”, justificou o mexicano Juan Puentes, diretor da instituição: “Rompe com paradigmas, denunciando o vazio da arte contemporânea e a mercantilização da cultura e da inteligência”.


Entrevistado por Ingo Shultz, um conhecido jornalista cultural, Samuel Pires mostrou-se indignado (e feliz), ou feliz (e indignado), tanto faz, com a venda da sua obra. 

–  É uma vergonha! – Foi o seu primeiro comentário.

– Uma vergonha?! – espantou-se Ingo.

– Precisamente. Como se vende uma linha imaginária? E, já agora, onde se guarda e como se mostra?

– São boas perguntas, realmente...

– Acontece que eles não compraram uma linha, senhor jornalista, compraram a ideia de uma linha.

– Pura arte conceptual, portanto?

– Puro conceito, sem arte nenhuma!

Ao comprar a minha instalação o museu mais não fez senão justificá-la. Deram-me razão.

– Então, compraram uma denúncia – concluiu o jornalista. – Sempre compraram alguma coisa. Embora seja uma denúncia um pouco cara, paga pelos impostos do povo alemão.

– Um pouco cara?! Pagaram uma fortuna por algo que qualquer dona de casa lhes teria dado de graça. É uma vergonha!

– Nesse caso, feita a denúncia, o senhor pretende devolver o dinheiro?

Samuel Pires encolheu os ombros, chocado:

– Claro que não! Sou um artivista, homem! Não sou um filantropo. Vivo do meu trabalho, denunciando, através da arte conceptual, o tremendo vazio da arte conceptual.

Ingo Shultz abanou a cabeça, concordando, mas nos seus olhos lia-se apenas uma vasta perplexidade:

– Um artivista é um ativista que usa a arte como forma de protesto, certo? Ainda é um artista. Acontece que o senhor denuncia a falta de arte na arte conceptual, fazendo arte conceptual, ou seja, na sua lógica, não fazendo arte. Afinal, o senhor é um artista ou um vigarista?

Samuel Pires apiedou-se do homem:

– Imagine que eu me disfarçava de padre para melhor denunciar a ausência de espiritualidade na Igreja Católica...

– Certo...

– Ainda assim eu teria uma alma. Seria um falso padre, denunciando a falsidade da Igreja Católica, mas não deixaria, por isso, de ter uma alma. Compreende?

O jornalista pensou um pouco:

– Não!

– Eu também não! – irritou-se Pires. – Mas, se estivesse no seu lugar, teria a delicadeza de dizer que sim e ia-me embora.

Ingo aprumou-se:

– Não me pagam para ser delicado, senhor Pires!

Pagam-me para fazer perguntas.

Pires sentiu que a mostarda lhe subia ao nariz.

Malditos alemães e a sua racionalidade diabólica.

Respirou fundo. Falou, separando bem as sílabas, como se estivesse a tentar comunicar-se com a Siri ou qualquer

outro assistente virtual:

– Da mesma maneira que a representação de um cachimbo não é um cachimbo, também eu, enquanto representação de um vigarista,

não sou um vigarista. Sou a representação triunfante de um vigarista.

Um vigarista é um vigarista, ao passo que a representação de um vigarista é uma obra de arte. Eu sou a minha própria obra de arte.

Entende agora?

O jornalista concordou, fatigado.

Nessa noite, ao jantar, anunciou à mulher, Sophia, que pretendia abandonar o jornalismo. Queria ser artista. Artista conceptual. A esposa olhou-o, com surpresa:

– Mas tu nem sequer sabes desenhar!

– Por isso mesmo. Se soubesse, desenhar seria um problema. Teria de esforçar-me muito para desaprender.

Não quero impor aos outros o meu estilo. Quero fazer uma arte democrática e imaterial.

Ingo S., o artista, alcançou grande sucesso logo na primeira exposição. 

Numa sala enorme, diante de quadrados desenhados no soalho, a tinta branca, os visitantes eram convidados a imaginar diferentes esculturas: aqui, uma baleia em bronze, amamentando uma sereia bebé; ali, um palhaço ajoelhado diante de Donald Trump, etc. Em apenas três dias, vendeu as obras todas.

– O melhor de tudo é que são fáceis de transportar e instalar – comentou Sophia Shultz à melhor amiga.

– E a produção foi muito barata.

Quem não gostou do sucesso de Ingo S. foi Samuel Pires. O artivista riscou com dois traços imaginários a galeria onde o alemão expunha a sua obra: “Com estes dois traços, destruo todas as obras imateriais de Ingo S”, anunciou num breve comunicado de imprensa. Dessa vez, contudo, ninguém lhe prestou atenção.


In Revista Visão

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