O ARTIVISTA • JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
“Esta linha separa o mundo real de uma fantasia faustosa e inútil, que os contribuintes sustentamcom os seus impostos”, explicou Pires em comunicado, que enviou a diversos jornais, rádios e televisões.
O trabalho, isto é, o comunicado original, assinado por Pires, foi adquirido, alguns dias depois, pelo próprio museu, por 150 mil euros. “
É uma obra extraordinária”, justificou o mexicano Juan Puentes, diretor da instituição: “Rompe com paradigmas, denunciando o vazio da arte contemporânea e a mercantilização da cultura e da inteligência”.
Entrevistado por Ingo Shultz, um conhecido jornalista cultural, Samuel Pires mostrou-se indignado (e feliz), ou feliz (e indignado), tanto faz, com a venda da sua obra.
– É uma vergonha! – Foi o seu primeiro comentário.
– Uma vergonha?! – espantou-se Ingo.
– Precisamente. Como se vende uma linha imaginária? E, já agora, onde se guarda e como se mostra?
– São boas perguntas, realmente...
– Acontece que eles não compraram uma linha, senhor jornalista, compraram a ideia de uma linha.
– Pura arte conceptual, portanto?
– Puro conceito, sem arte nenhuma!
Ao comprar a minha instalação o museu mais não fez senão justificá-la. Deram-me razão.
– Então, compraram uma denúncia – concluiu o jornalista. – Sempre compraram alguma coisa. Embora seja uma denúncia um pouco cara, paga pelos impostos do povo alemão.
– Um pouco cara?! Pagaram uma fortuna por algo que qualquer dona de casa lhes teria dado de graça. É uma vergonha!
– Nesse caso, feita a denúncia, o senhor pretende devolver o dinheiro?
Samuel Pires encolheu os ombros, chocado:
– Claro que não! Sou um artivista, homem! Não sou um filantropo. Vivo do meu trabalho, denunciando, através da arte conceptual, o tremendo vazio da arte conceptual.
Ingo Shultz abanou a cabeça, concordando, mas nos seus olhos lia-se apenas uma vasta perplexidade:
– Um artivista é um ativista que usa a arte como forma de protesto, certo? Ainda é um artista. Acontece que o senhor denuncia a falta de arte na arte conceptual, fazendo arte conceptual, ou seja, na sua lógica, não fazendo arte. Afinal, o senhor é um artista ou um vigarista?
Samuel Pires apiedou-se do homem:
– Imagine que eu me disfarçava de padre para melhor denunciar a ausência de espiritualidade na Igreja Católica...
– Certo...
– Ainda assim eu teria uma alma. Seria um falso padre, denunciando a falsidade da Igreja Católica, mas não deixaria, por isso, de ter uma alma. Compreende?
O jornalista pensou um pouco:
– Não!
– Eu também não! – irritou-se Pires. – Mas, se estivesse no seu lugar, teria a delicadeza de dizer que sim e ia-me embora.
Ingo aprumou-se:
– Não me pagam para ser delicado, senhor Pires!
Pagam-me para fazer perguntas.
Pires sentiu que a mostarda lhe subia ao nariz.
Malditos alemães e a sua racionalidade diabólica.
Respirou fundo. Falou, separando bem as sílabas, como se estivesse a tentar comunicar-se com a Siri ou qualquer
outro assistente virtual:
– Da mesma maneira que a representação de um cachimbo não é um cachimbo, também eu, enquanto representação de um vigarista,
não sou um vigarista. Sou a representação triunfante de um vigarista.
Um vigarista é um vigarista, ao passo que a representação de um vigarista é uma obra de arte. Eu sou a minha própria obra de arte.
Entende agora?
O jornalista concordou, fatigado.
Nessa noite, ao jantar, anunciou à mulher, Sophia, que pretendia abandonar o jornalismo. Queria ser artista. Artista conceptual. A esposa olhou-o, com surpresa:
– Mas tu nem sequer sabes desenhar!
– Por isso mesmo. Se soubesse, desenhar seria um problema. Teria de esforçar-me muito para desaprender.
Não quero impor aos outros o meu estilo. Quero fazer uma arte democrática e imaterial.
Ingo S., o artista, alcançou grande sucesso logo na primeira exposição.
Numa sala enorme, diante de quadrados desenhados no soalho, a tinta branca, os visitantes eram convidados a imaginar diferentes esculturas: aqui, uma baleia em bronze, amamentando uma sereia bebé; ali, um palhaço ajoelhado diante de Donald Trump, etc. Em apenas três dias, vendeu as obras todas.
– O melhor de tudo é que são fáceis de transportar e instalar – comentou Sophia Shultz à melhor amiga.
– E a produção foi muito barata.
Quem não gostou do sucesso de Ingo S. foi Samuel Pires. O artivista riscou com dois traços imaginários a galeria onde o alemão expunha a sua obra: “Com estes dois traços, destruo todas as obras imateriais de Ingo S”, anunciou num breve comunicado de imprensa. Dessa vez, contudo, ninguém lhe prestou atenção.
In Revista Visão
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