A PROPÓSITO DA PARÁBOLA DOS CEGOS DE PIETER BREUGEL
DO ACORDO ORTOGRÁFICO À NEO-LINGUAGEM INCLUSIVA
DA ORTOGRAFIA DESACORDADA
Que não subscrevo o acordo ortográfico é ponto assente. Por razão nenhuma quero perder a etimologia das palavras. Por isso recuso a receção em vez da recepção, a conceção em vez da concepção, o egito em vez de Egipto. Não sou linguista nem tenciono ser, mas não me dobro perante quaisquer interesses ou conveniências quando recordo que ao escolher no meu computador o Inglês, se abre um menu com diferentes versões do Inglês, da Jamaica ao de Hong Kong, Reino Unido, Canadá, Estados Unidos e o mais que não me recordo.
Porém sei que a língua inglesa mantém reception e não recetion, conception em vez de concetion e Egypt em vez de egyt.
Há ainda os adeptos das estatísticas, e então lá vêm para o caso os PALOP, os 200 milhões de falantes e o Brasil, etc. e tal, que a mim me deixam completamente indiferente. Não classifico nada pelas quantidades. Apenas pela pureza e qualidade. Que o Brasil diga que um fato é um terno, e que guitarra clássica é violão, a mim não me perturba. O que me incomoda é a subordinação, um fato é roupa e um facto deriva do latim factum e deve ser mantido, como acto (do latim actus) e acta (do latim actum), e não ato e ata, que nada desata, antes confunde.
E se é assim que penso é assim que escrevo e neste (des)acordo ortográfico antevejo a médio prazo, a perda da etimologia das palavras. Infelizmente, em vez de se celebrar a diversidade da língua portuguesa, aposta-se numa uniformização empobrecedora.
Desejando que o leitor tenha visitado o texto hiperligado ao subtítulo, recorda-me logo do ditado que, atento o (des)acordo ortográfico, diz que um mal nunca vem só. Agora vem o medo das palavras, novos preconceitos eivados de uma aparente e dispensável compaixão que parece que vieram para ficar.
Direi primeiro que não acho bem, que andam para aí algumas cabeças num desconchavo tal que se equipara ao dito (des)acordo ortográfico.
O que terá feito disparar, à maneira de um interruptor, esta vontade de alterar no geral a linguística, e a semiótica no particular, sobretudo pelo lado simbólico?
A língua é um património nacional, fruto de uma evolução linguística e gramatical que oferece uma coerência decorrente de um processo evolutivo amadurecido. Não se deve mudar assim por uma questão de pruridos ou de outras razões menos claras porque, de facto, o povo português não tem o hábito de chamar às insuficiências de alguém um nome menos respeitoso, nem delas se rir.
Querer subitamente ver avançar um manual, imagine-se, um manual, que aos meus olhos passa por ridículo, tout court, é, no mínimo, insensato
Com efeito, a notícia do Observador começa por dizer que “o principal objetivo do manual é uniformizar, desta forma 'neutra e inclusiva', a linguagem dos documentos oficiais produzidos no CES” o que desperta em mim duas associações: primeiro ao ler “neutra” disparam as minhas sinapses a associar, mesmo que interlinguisticamente, a palavra “neuter” que significa em inglês “castrar”, como em “to neuter a dog”.
Mas é preocupante esta neutralização da linguagem. Nunca considerei a linguagem neutra. Seria o cúmulo dos cúmulos, uma ofensa à semântica e à intencionalidade. Neutralizar uma linha de pensamento, pondo-lhe pedras no caminho é, no mínimo, infeliz. Mas acalento a esperança de que tudo isto se circunscreva aos documentos internos do Conselho Económico e Social para onde foi depositado o Dr. Francisco de Assis.
Por outro lado, o artigo diz, por exemplo, que a socióloga Sara Falcão Casaca, uma das autoras do manual, que há que defender as pessoas das deficiências de que algumas são portadoras, porquanto “não é a pessoa que se qualifica, mas sim a sua condição de deficiência ou de incapacidade para o trabalho profissional”. Portanto, como será, futuramente, a designação dos Jogos Paralímpicos? Estou manifestamente curioso. Sempre entendi que um deficiente é uma pessoa portadora de uma deficiência e nunca confundi a pessoa com a deficiência. Mas isso poderá ser uma deficiência minha...
Vejamos, por fim, para não arrastar muito o pensamento ou delírio que comanda a original ideia de um manual, fui saber o que significava amblíope, que era termo meu desconhecido. O Dicionário Online de Português respondeu-me que é “aquele que sofre de ambliopia, enfraquecimento da visão sem que haja lesão aparente no globo ocular, podendo ser causada pelas mais variadas razões.” E o manual recomenda que que tais pessoas passem a ser referidas como “pessoas com baixa visão”.
Pronto, daqui em diante pergunto-me como será o novo título do “Ensaio sobre a cegueira” de Saramago e “Da cegueira dos pintores” de Júlio Pomar, isto para não falar de Pieter Breugel e do seu “Cego guiando cegos” que aqui tão apropriadamente se inscreve.
Ficam algumas questões no meio desta perplexidade: como se designarão no futuro os coxos, os que não têm um braço, os gagos. Caberão na categoria geral de “pessoas com deficiência” ou terão designações específicas? O manual ainda não foi divulgado, e desejo que não seja um produto do novo-normal a haver. Falta também saber em que categoria ficarão os políticos, ou será que agora a deficiência é do Manual da Casaca?
Aliás estão por estudar as consequências a curto, médio e longo prazo de portadores assimptomáticos de COVID-19. Uma certeza: os confinamentos podem dar origem aos mais variados e inesperados sintomas, e as vacinas ainda não chegaram a mim, apesar de idoso. Perdão, de “pessoa idosa”, macaense, aliás “pessoa de etnia macaense”.
Não podia concordar mais!
ReplyDeleteExcelentes observações!
De facto, não há melhor imagem que a de Bruegel!
Muito obrigado Ana.
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