A ARTE DA ESPERA

 


Numa rua próxima, atrás de um velho balcão, está a tabacaria que vende revistas, euromilhões e raspadinhas, cromos e outras coisas mais. Atrás do balcão antigo e puído, decorado por revistas que se espraiam numa prateleira que ao balcão lhe aumenta a largueza, está o senhor Ramos, assim à maneira de sempre, que é pelo apelido que se distinguem as pessoas. O senhor Ramos, entradote em anos, máscara acrílica a cobrir-lhe o rosto todo, move-se lentamente, ao compasso do pêndulo do relógio de parede ali em frente, desde sempre parado.

A tabacaria é pequena, estreita para os clientes, agora ainda mais, que são um de cada vez lá dentro. Cá fora uma fila de seis pessoas. Dentro, uma mulher risca com a unha uma raspadinha, enquanto o senhor Ramos aguarda pacientemente. E logo a mulher pede outra, e ali se fica a sonhar prémios, enquanto os de fora pacientemente esperam a vez de fazer esperar os outros, que isto é um contágio.


Mais além, no talho, o cliente pede carne. Sim, num talho só se vende carne. “E o que vai ser” pergunta o talhante. “Bifes” responde-lhe o cliente. “Temos carne da vazia, pojadouro e alcatra...” responde o talhante, luva metálica na canhota, enquanto afia uma das facas. O cliente mostra-se hesitante, que vai ali aos recados, que de vacas só as conhece vivas, e bifes... só no prato. Lá fora uma outra fila que espera pacientemente, a primeira da fila rezando o terço enquanto aguarda a vez, outras conversando, esperando contar as novidades ao talhante, que está para as mulheres como o barbeiro para os homens. Mas o homem não se desembaraça. Quer saber qual a mais barata, e não, não sabe se é para grelhar ou fritar. A hesitação e o paciente talhante ameaçam espera interminável. Não é costume, porque os homens compram depressa, sem grandes discussões. E lá fora, resignada, a fila, agora aumentada, gere a espera à conversa.
 

Ali na rua do Feital, no rés-do-chão do segundo prédio antigo, funciona “A Moderna – Barbearia”. Quem por ali passe junto às portas de vaivém poderá ouvir como fundo o som de tesouras a cortar, mas ouvirá certamente as conversas entre barbeiro e cliente e de cliente para cliente. Se se detiver a olhar, verá que é modesta a barbearia, as duas cadeiras do ofício ocupadas, os oficiais a tosquiarem, salvo seja, e três cadeiras ocupadas por clientes à espera de vez, que aqui não há marcações. Numa das cadeiras discute-se política, na outra, futebol. Nas cadeiras de espera, um cliente está tapado pelo jornal aberto enquanto os outros dois, tudo gente conhecida, também vão intervindo, quer na política quer no futebol. Subitamente entra uma mulher que se dirige a um dos que, sentado, espera: “Ainda aqui estás, Manel?” o homem, interrompe a prelecção, “Ó Maria, ainda não chegou a minha vez. Atão... há-de chegar”. E Maria retruca “valha-me a senhora de Fátima, Manel, estás na rua há horas e daqui a pouco está pronto o comer...” e estala a língua aborrecida, saindo.


E neste pequeno périplo lá fui aprendendo umas coisas mais sobre o povo português, embora para esperar me falte a paciência. De súbito associei estas cenas todas à hipotética cena do forcado que incita o touro e este nada. Volta a gritar “eh touro” e o boi nada. Se falasse era capaz de dizer “aguenta aí um bocadinho que já te avio.” 

E deste modo, à maneira do senhor Feliz e do senhor Contente, é assim que vai este país.

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