A DANÇA DOS NOMES

DO CONSELHEIRO ACÁCIO AO SR. JOSÉ


Os costumes mudam, mas muitas vezes a mudança faz-se ou pela ruralidade chegada à cidade ou pela emigração de língua idêntica mas de outras práticas, inclusive as ortográficas, que não aceito nem subscrevo. Por exemplo, Receção em vez de Recepção.
Aqui fica breve apresentação da arte da conversa e do modo de trato que Eça de Queirós apresenta no seu “Primo Basílio”, publicado em 1878, e que narra a vida burguesa do último quartel do século. Eis-nos então a ouvir o Conselheiro Acácio pela vez primeira:
…"Porque o Conselheiro, o Conselheiro Acácio, nunca vinha aos chás de D. Luísa, como ele dizia, sem ter ido na véspera ao Ministério das Obras Públicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura:
— Jorge, meu amigo, amanhã lá irei pedir à sua boa esposa a minha chávena de chá.
Ordinariamente acrescentava:
— E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a Sua Excelência. Os meus respeitos a esse formoso talento! “

Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca — e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.
Fora, outrora, director-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia "El-rei", erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre o nosso Garrett, o nosso Herculano. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política: tinha composto os Elementos genéricos da ciência da riqueza e a sua distribuição, segundo os melhores autores, e como subítulo: Leituras do serão! Havia meses publicara a Relação de todos os ministros de Estado desde o grande Marquês de Pombal até nossos dias, com datas cuidadosamente averiguadas de seus nascimentos e óbitos.
— Já esteve no Alentejo, Conselheiro? — perguntou-lhe Luísa.
— Nunca, minha senhora — e curvou-se. — Nunca! E tenho pena! Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.
Tomou uma pitada de uma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
— De resto, país de grande riqueza suma!
— Ó Jorge, averigua quanto é o partido da Câmara em Évora — disse Julião do canto do sofá.
O Conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:
— Devem ser seiscentos mil réis, Sr. Zuzarte, e pulso livre. Tenho- -o nos meus apontamentos. Por que, Sr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?
— Talvez!...
Todos desaprovaram.
— Ah! Lisboa sempre é Lisboa! — suspirou D. Felicidade.
— "Cidade de mármore e de granito", na frase sublime do nosso grande historiador! — disse solenemente o Conselheiro.
E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.
D. Felicidade disse então:
— Quem não era capaz de deixar Lisboa nem à mão de Deus Padre, era o Conselheiro!
O Conselheiro, voltando-se vagarosamente para ela, um pouco curvado, replicou:
— Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta de alma!
— O Conselheiro — lembrou Jorge — nasceu na Rua de São José.
— Número setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada àquela em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!”
E por aí fora iriamos seguindo os comportamentos destes burgueses de uma Lisboa desaparecida.

Mais tarde ouviríamos Vasco Santana gritar “chapéus há muitos, seu palerma” para relevar a banalidade que agora se instalou do nome próprio em particular e, por consequência, nos nomes em geral.

Vamos a um exemplo: Em Macau ouvi, incrédulo, uma recepcionista vinda de Portugal, chamar pela “Senhora Maria” ao microfone. Fiquei boquiaberto com a crassa ignorância de alguém que precisava de ter algum polimento.
Em Português, o que há mais são Marias, o que significa que a recepcionista não sabia os mínimos. Deveria chamar por Senhora Da. Maria Isabel, Maria Hermengarda, porque Marias, tal como os chapéus, é o que mais há. Depois é o Senhora, em vez de Senhora Dona ou mesmo de Dona, apesar de me parecer que esta disseminação do tratamento pelo nome próprio é uma importação inconvincente ou então, ignara, rural. Porque Dona vem do latim Domina/ae e significa Senhora, esposa, sem esquecer regionalismos que não serão seguramente urbanos.

Aos homens, que antes se tratavam por Senhor Silva, Senhor Costa, ou Senhor Portela Filho, por exemplo, passou-se a tratar por Senhor Carlos, Senhor António, Senhor José, quando o que distingue o nome não é o primeiro, mas sim o sobrenome, o apelido. Carlos, Antónios e Josés é o que mais há, também como os chapéus.
Em Macau, bem longe da origem, demonstraram muito mais conhecimento de que Senhor vem do latim Sénior, o mais velho, optando por me tratarem por Conceição Júnior, demonstrando saberem que Júnior é o latim para o mais novo, isto é, não é em si apelido, como Filho, de Portela Filho também não. Porque habitualmente quando ouvem Júnior, tratam-me também por senhor Júnior. 
Estamos de facto num outro tempo onde o conhecimento das etimologias não existe e já vamos com sorte em não sermos insultados com a melhor das intenções. Ter importância não tem, mas faz pena ver a disseminação da ignorância.

Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes? O sorriso, em milénios  nunca foi um esgar. Por isso, não entendo porque a cortesia que por cá tão bem se pratica, não é acompanhada dos devidos conhecimentos que a adornem. A ignorância, já se sabe, é não saber que não se sabe. É como aquela velha frase de sabedoria popular: “quem não sabe é como quem não vê”.
Nestas coisas, é preciso ter mais de seis dezenas de anos. Eu que já ouvi garotos metidos a dentistas a tratarem-me por “você” sem sequer terem consciência disso. Não lhes disse que "você é estrebaria" porque não saberiam decifrar. 
Apesar da aprazibilidade de tudo, eu que sou perfeccionista, gostaria de saber que as pessoas, não precisando de ser Acácios, nem serem condecorados, soubessem tratar-se mutuamente de forma correcta. Porque a educação, nestas coisas não muda. É tudo uma questão de se saber falar Português.
E as televisões em particular e os meios de comunicação em geral, são os primeiros a desajudar.

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