DA DEMOCRACIA E DOS SEUS OPOSTOS
A democracia nunca foi coisa consensual em Atenas, e isso apesar do seu sucesso e da sua grande estabilidade no tempo.
MOSSÉ, Claude. Regards sur la Démocratie Athénienne
Na história da humanidade dos últimos 5.000 anos, há uma constatação: a de que, por um brevíssimo período de tempo, na Grécia Antiga, entre o séc.V a.C. e o séc.IV existiu uma democracia selectiva(1) que seria terminada no século seguinte, por Alexandre Magno.
A República em Roma foi, como se sabe, herdeira do pensamento Grego, alternando com as ditaduras de cônsules tornados imperadores.
Temos assim que, durante os citados cinco milénios, apenas no século XIX, após a breve experiência britânica do século XVII e dos dez anos da Revolução Francesa, se dá a emergência dos modernos conceitos e ideologias, e o ressurgimento, noutro contexto, da demos krato. Esta conversão dos regimes maioritariamente absolutistas, nasceria ironicamente de um parlamentarismo vitoriano, sustentado por um regime capitalista nascido da Revolução Industrial e, como reacção àquele, a formulação de uma extensa análise sobre o sistema capitalista, por Karl Marx, na sua obra “Das Kapital”, da qual apenas viu em vida o primeiro volume.
A Revolução Industrial pode ter constituído um enorme avanço, mas estou certo que a visão da poluição que aqui se mostra e da exploração do trabalho infantil e ainda da condição de enorme pobreza das classes verdadeiramente exploradas, representadas pelas crianças, demonstra aos olhos de hoje, quão injusta foi.
o princípio da poluição
riqueza construída pela exploração do trabalho infantil
infâncias não vividas, mergulhados em minas.
Impõe-se assim uma visão histórica assente no passado para a construção de um futuro de bem estar mundial, por muito utópico que seja, urge seguirmos o que Ricardo Reis escreveu:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Vivemos assim, maioritariamente, um tempo que foi tribal, monárquico, absolutista e imperial, com um ainda brevíssimo período onde a república acaba por se tornar, na maioria dos casos, o suporte para a implantação do conceito de democracia ressuscitado das cinzas de Atenas.
É neste conjunto de avanços e retrocessos históricos que o conceito de democracia vigente no Ocidente, herdeiro do legado helénico, apesar dos avanços tecnológicos e da sua indispensável relação com a ideia de liberdade e igualdade, continua ainda em construção, com nações em diferentes estádios de desenvolvimento e implementação.
Não é minha intenção, como está expresso, fazer uma narrativa exaustiva ou uma análise histórica ou filosófica dos regimes. Não é disso que se trata, nem de abrir um debate ocidental entre esquerda e direita, mas reflectir sobre as ainda enormes imperfeições que existem na democracia ocidental de cariz capitalista.
Não é assim possível deixar de constatar que o conceito de “mercados” ou de “bolsas” e outros instrumentos sujeitos a especulação ou flutuação, são a característica principal de uma orfandade ideológica, sem pensamento estruturado, fundamentado em princípios que se orientam exclusivamente para o lucro, e onde a liberdade é um valor bastante subjectivo.
Nesta Europa dita democrática e da economia de mercado, os PIBs variam de país para país, sendo que o PIB português é um dos mais baixos. Portugal está, de acordo com o index mundi, posicionado em 18º lugar, com 314 mil milhões de euros, abaixo da Espanha, Turquia, Polónia, Roménia Ucrânia e Irlanda, e logo acima da Grécia. O PIB per capita português é de 23.407 USD, para uma população de 10,28 milhões.
Na aldeia global em que vivemos, o olhar e o pensamento não podem ser nem etno nem geocêntricos. Tudo circula pelo globo a uma velocidade indescritível. O pensamento holístico parece ser, pois, o instrumento mais útil. É assim que me parece aconselhável, sempre, ir buscar os saberes onde estão as experiências concretizadas.
Dizia certa vez o Embaixador João de Deus Ramos, numa comparação entre Portugal e a China que, "sendo Portugal um país antigo na Europa, tinha havido uma dinastia na China (Zhou, 1046 a.C. – 256 a.C.) que tinha durado 790 anos".
Até muito recentemente (1912), o Império do Meio foi isso mesmo: imperial.
E é imperioso olhar para o mundo como um todo. O Ocidente olhar para o Oriente e vice-versa. Já não vivemos isolados, apesar dos confinamentos de um vírus que é o exemplo da velocidade física da globalização.
Por acaso do destino e da vivência, nasci numa pequena cidade na costa meridional chinesa que teria o maior PIB do mundo, não fosse a pandemia: Macau.
Poderá dizer-se que Macau, pertencente à República Popular da China, é uma democracia? Direi que não. Mas pergunto-me se os países da Europa Ocidental o serão verdadeiramente.
Contudo o PIB de Macau em 2018 foi de 48 mil milhões de euros com um PIB per capita de 73.000 euros para uma população de 680 mil pessoas. Em 2020, não fosse a pandemia, e Macau seria a cidade do mundo com o mais elevado PIB, como já se disse e, contudo, a distribuição do dinheiro de uma sociedade do chamado primeiro mundo não corresponde ao expectável nem também em qualidade de vida.
A questão que se coloca é o que se deve entender hoje por democracia. Que conceito se poderá ter de liberdade, no momento actual da Sociedade (digital) da Informação? Parece legítimo perguntar se existe verdadeiramente liberdade (incluindo o direito à privacidade) ou se, de facto, a tecnologia veio terminar radicalmente com uma substancial parte do dito conceito, quer pela manipulação da informação, pelo uso de dinheiro de plástico que permite seguir o rasto dos seus possuídores, quer ainda pela utilização da internet, com a presença de cookies que, no mínimo, asseguram a leitura das visitas a sites e, igualmente, a existência das redes sociais. E que dizer de um futuro muito próximo onde a circulação das pessoas no mundo será feita pelo reconhecimento facial?
reconhecimento facial mundialmente disseminado
Estamos em presença de mecanismos que trazem por um lado grande conveniência e, por outro, uma componente perversa pelas razões acabadas de expôr. Assim, e sem falar na melhor distribuição do dinheiro, será de perguntar se liberdade é apenas o direito livre de expressão, de deslocação, e de voto, associando-se a estes valores, o conceito de democracia. Considerando que tal conceito pressupõe igualdade, como justificar sistemas económicos que permitam que as desigualdades cheguem a extremos impensáveis, por exemplo a 1.500% de diferenças salariais?
É perante estas discrepâncias ideológicas – o capital ou o lucro não são ideologias – que mais uma vez se chama a China e os Estados Unidos à colação.
Sendo um regime monopartidário e autoritário, possuidor da maior população do planeta, estimada em 1.400 milhões, atingiu a partir dos anos 80 do século XX um progressivo desempenho da sua economia, por via dos planos quinquenais, evoluindo para uma “economia socialista de mercado” e elevando mais de 400 milhões (a população da União Europa é de 446 milhões de habitantes) da sua população para o nível de classe média e atingindo como economia o patamar de segunda maior economia mundial, enquanto a maior potência de fabrico e exportação mundial, ameaçando seriamente a posição dos Estados Unidos que se caracteriza por uma economia neo liberal onde o estado social não existe, ao contrário da economia chinesa que também permite a existência de enormes grupos privados em convivência com o estado e, em muitos casos, em interacção com o mesmo.
É assim que a Fortune 500 apontou em 2019, 121 Grupos Americanos e 119 Chineses, uma escassíssima diferença de duas empresas.
A mesma Forbes elaborou uma China Rich List que integra 393 bilionários chineses cujas fortunas merecem ser analisadas.
Note-se que o lider da conhecida Fosun, que tem largos investimentos em Portugal, está colocado em 50º. lugar com apenas 5.79 mil milhões e o seu proprietário detido.
Por outro lado, a pandemia do Covid-19 veio revelar que, assustadoramente, em Portugal, 99.6% da economia portuguesa é composta por micro, pequenas e médias empresas. Isto é, apenas 0.4% da economia portuguesa se compõe de grandes empresas de que se mostra aqui a lista das dez maiores a nível de resultados e a nível de vendas:
Por outro lado, foi a economia capitalista americana que criou e provocou a Grande Depressão de 1929 que durou uma década. Como se tal não bastasse, em 2008, iniciada com a queda da Lehman Brothers dá-se início à Grande Recessão, a mais grave crise desde a de 1929, que atingiu também a União Europeia e se espalhou pelo mundo.
Portugal, como país Europeu e membro da EU foi profundamente afectado com esta crise. Neste momento, e devido à pandemia do coronavírus 19, ainda se sente pouco a crise que daí advirá.
Olhando de Oriente para o Ocidente em termos de cenários político-económicos, temos que a R.P. da China, que em Dezembro passado terá alegadamente iniciado a pandemia, recuperou, e as suas empresas do sector passaram, na fase mais crítica ocidental, a vender equipamentos médicos para o Ocidente. No mínimo é irónica a capacidade de resposta ocidental e a dita mais-valia da democracia.
No outro extremo, os Estados Unidos, auto-intitulados líderes do mundo livre e bastião da democracia, registaram um dos maiores índices de mortalidade do mundo, com 129.226 vítimas e uma infecção de 2,776 milhões de infectados de acordo com dados da John Hopkins University.
De um lado um regime autoritário que toma medidas imediatas na recaída de Pequim. Do outro, um regime com um sistema eleitoral que não corresponde a um cidadão-um voto, liderado por um homem de negócios com sinistros padrões comportamentais, fortemente contestado pelos democratas e por afro-americanos por razões sobejamente conhecidas.
No meio, alheando-nos das Américas Central e do Sul, a União Europeia vai-se desconfinando em dinâmicas diferentes umas das outras, e entrando em proibições de circulação que os jornais noticiam regularmente.
Este último cenário em que Portugal se insere, e onde a ausência de uma autoridade mais musculada originou a mais recente disseminação do Covid19.
Este confinamento, que deixou muita gente desequilibrada, não deixa de permitir que cada um reflicta sobre o conceito profundo de democracia, isto é, muito simplesmente:
–Há pão em todas as casas?
–Há casas para todos?
–A saúde é gratuita ou acessível para todos?
–Estamos em Paz ou as transgressões de uns afectam todos? –E que fazer nesta pandemia?
–Escolas privadas e escolas públicas.
Será isto democracia? Estou a recordar-me dos rostos daqueles meninos mineiros...
Será isto democracia? Estou a recordar-me dos rostos daqueles meninos mineiros...
(1) Apenas cerca de 30 por cento da população ateniense, aquela nascida em Atenas e possuidora de bens podia participar em eleições. Estavam excluídos mulheres estrangeiros e escravos.
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