O SENHOR JOSÉ
Bateu-me à porta o senhor José,
um dia que era manhã, deviam ser pouco mais do que as oito horas. Homenzarrão
de rosto simpático, risonho, transpirava candura. Estendeu-me a mão calosa, num
cumprimento leal e genuíno, dizendo que era o José Inverneiro, picheleiro.
O patrão tinha-o cá mandado ver das caleiras. As árvores da praça despejavam folhas nesse começo de Outono. Tinha já chovido e as folhas podiam, nas caleiras, fazer com que a água transbordasse para o lado errado.
O patrão tinha-o cá mandado ver das caleiras. As árvores da praça despejavam folhas nesse começo de Outono. Tinha já chovido e as folhas podiam, nas caleiras, fazer com que a água transbordasse para o lado errado.
o senhor José
Veio com o sô Victor, aleijado
de uma perna, que era o único servente existente naquela empresa.
José, que atirava para o metro e oitenta e muitos, braços musculosos de puxar tijolos, cinquenta e tais bem ginasticados, que a obra é um grande ginásio. E lá de onde vinha, de Castelo de Paiva, não era excepção.
José, que atirava para o metro e oitenta e muitos, braços musculosos de puxar tijolos, cinquenta e tais bem ginasticados, que a obra é um grande ginásio. E lá de onde vinha, de Castelo de Paiva, não era excepção.
Trazia uma escada de alumínio,
as três partes unidas para se distender. Foi às traseiras, viu por baixo a
base da caleira e, naquele seu sotaque que faz de Portugal um país de milhares
de sabores da palavra, disse ao Victor que era bom desmanchar a escada, que
aquilo era alto mesmo.
Reparei então que a distância
da beira da varanda traseira até ao beiral do telhado era pequena. Talvez
tivesse um metro, talvez menos. E a caleira estava a uns bons sete ou oito metros.
“Ó senhor José, o senhor não
vai subir à escada que isto é muito íngreme” disse-lhe eu enquanto via a escada
a crescer, uma porção unindo-se à outra. Sem mais hesitações, José pegou na
escada e colocou-a na estreita beira do varandim, onde se apoiam os cotovelos.
Aquilo era morte certa.
Contrariou-me dizendo “calma senhor António, teinha calma, que a geinte
resolve isto”, e virando-se para o Victor disse-lhe para buscar umas tábuas e
uns grampos.
Com à vontade e mestria prendeu os
grampos às tábuas que evitariam que a base da escada escorregasse. Eu intervim
a dizer que não o deixava subir, que aquilo era perigosíssimo, que não tinha
uma corda para se prender nem sítio para a prender. Recuou, olhou o ângulo que
a escada fazia com a parede onde se encostava, olhou, hesitou. “Está muito na
prumada, senhor António. Aquilo é morte quase certa.” Pediu-me o telemóvel, que
o dele não tinha carregameinto, ligou para o patrão e disse-lhe que
aquilo não podia ser. Tinha de ser com andaimes. Depois punha-se-le uma
tábua e atravessava para as teilhas.
E para meu descanso vi-o
desmanchar aquilo tudo e arrumar, que quem fazia quase tudo era ele, protegendo
a fraqueza do Victor.
Com todo o cuidado para não
riscar ou ferir nada, cuidado a que eu não estava habituado vi-o, e ao sô Victor, levar tudo de volta para a carrinha e prometer que viria com os andaimes.
Os dias estavam chuvosos mas,
dois dias depois, tocava ele à porta pela mesma hora. Lá fora uns quatro trolhas
tinham ajudado a descarregar os andaimes numa carrinha maior onde aqueles
cabiam. Ficou apenas José Inverneiro e o Victor. O céu azulava, não havia
vestígio de nuvem.
O senhor José pegou nas peças
dos andaimes como se fossem arames e transportou-os, montou-os no pátio
traseiro com uma ligeireza que me deixou atónito. Aquilo crescia rapidamente,
andar sobre andar. O senhor José amarinhava por ali acima encaixando as
tubagens, prendendo os ferros cruzados, e aos poucos tudo aquilo foi-se
transformando na minha mente.
De súbito vi-o a amarinhar pelas enxárcias, ao sabor das ondas, a proa cortando o mar, chegando breve ao mastro grande e dali, do cesto da gávea,
mirar o horizonte em busca, a bombordo, de terra.
Foi desta gente, a um tempo valente e humilde, anónima, que se fizeram os
descobrimentos.
Eu bem gritava cuidado. Bem
dizia para, no seu próprio vocabulário, não facilitar. Respondeu-me humilde mas
franco: ”ó senhor António, se uma pessoa tem meido, aí é que há
desastre. Non se preocupe”.
Já lá em cima, a uns bons dez
metros de altura, desistiu da prancha. Aquele corpo, ginasticado pelo trabalho,
fez de prancha. Os pés assentes nas bases de metal do andaime, o centro de
gravidade atirado para trás, ei-lo com o tronco, a cabeça e os braços a cortar
uma telha à máquina, num equilíbrio mais que precário. Falava para baixo, dava
ordens ao Victor. E tirava folhas velhas à mão, que entupiam a caleira.
Diagnosticou que as duas últimas telhas convergiam de tal modo para a caleira
que as mesmas não deixavam espaço para as mesmas escorrerem. E cortou-as à máquina.
Eram assim os homens de há
quinhentos anos, que hoje se cruzam connosco, e ai de nós se não os reconhecemos,
heróis por cantar que, de peito às flechas e balas, non habia que ter meido qu’enton
era morte ceirta.
À despedida ainda me disse que se tivesse chovido teria feito o mesmo, que o ofício non conhece o teimpo.
À despedida ainda me disse que se tivesse chovido teria feito o mesmo, que o ofício non conhece o teimpo.
E assim se foram, o senhor José
e o sô Victor, libertos um dia mais da morte.
Vi-os afastarem-se na carrinha
da obra. E pensando para comigo, que se não fosse gente desta cepa, eu não existiria.
Pelo menos vindo de onde venho...
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